quinta-feira, 30 de maio de 2013

ANJO AZUL

Encantamento instantâneo. Ela canta sentada, pernas ligeiramente entreabertas, o olhar de soslaio, meio lastimoso, a interpretação simples, plena de sentimento. Nunca ouvi a canção, e o quadro todo, suavemente iluminado por um azul de sonho, não me deixa desviar os olhos dela.
Chove a cântaros. Estou sozinho bebendo conhaque em minha habitual jornada solitária de quarta-feira após o expediente, e jamais imaginei que daquele palco infame surgiria tão bela e comovente figura. O dono do bar, um gordo triste e fedorento, cujo nome nunca me interessei em saber, já anunciara que teríamos uma grata surpresa na noite. Contudo, como quase sempre as eventuais atrações deste antro reduzem-se a lamentáveis enganos artísticos, limito-me a não lhe dar o devido crédito.
Sou um dos únicos fregueses, afora alguns empresários ocupados com seus negócios, reunidos em torno de um notebook, e um casal que não consegue parar de se beijar.
Assim, não tendo para quem cantar, a criatura angelical banhada em azul passa a lançar olhares a princípio casuais em minha direção, que logo tornam-se constantes e acintosos. Fico tão desconcertado que mal consigo pedir outra dose. Acendo um cigarro e passo a encará-la de volta. Ela sorri e, entre uma canção e outra, anuncia: “A próxima é dedicada ao meu único ouvinte”. E canta “Movimento dos Barcos”. Nunca morri de amores por esse samba triste, mas o modo como ela o canta me embala a alma...
A seguir, ela faz um intervalo, quando então segreda ao microfone: “Não saiam daí. Eu vou ali e já volto.” Acho graça na maneira provocativa dela de anunciar seu entreato. Fico torcendo pra ela descer do palco e vir direto falar comigo. Mas a beldade simplesmente some nos bastidores. O bar então é subitamente invadido por uma dessas repulsivas seleções musicais...
Grito pro garçom:
- Pede pra abaixar esse lixo.
Ele, claro, não me ouve:
- Que?
- Abaixa um pouco esta merda.
- Ordens do patrão.
- O patrão sou eu. Sou freguês dessa joça e um dos únicos com coragem de ficar aqui por mais de uma hora.
- Fala você com o gordo. Ele não tá bom hoje não.
- É claro que ele não tá bom. Ele é um bosta.
- Diz você isso pra ele.
- Você também é um bosta.
- E você também é um bosta.
- Claro, aqui tudo é bosta. Essa música, eu, você, o gordo. Tudo uma bosta só.
- Que que há? Ainda não bebeu bastante?
Levanto e grito:
- Abaixem esta merda.
O gordo grita de volta, do outro lado do balcão:
- Ó a boca. Sem gritaria aqui dentro. Sem palavrão.
Subo na cadeira:
- Sem gritaria, sem palavrão, mas toca esta merda num volume de merda que é-
- Que é pra ninguém ficar falando merda, atalha o garçom, querendo me tirar de cima da cadeira. 
Acerto um direto de direita no queixo do desgraçado, ele cai em cima da mesa vizinha, estabaca-se no chão e não levanta. O gordo corre pra cima de mim, um búfalo. Não é preciso mais do que sair do lugar e deixar ele passar. O infeliz dá com os cornos no pilar ao lado de minha mesa. Dá gosto de ver. A cabeça é tão oca que o ruído da porrada ecoa mais alto do que a música.
Nessas alturas, os poucos fregueses já correram todos dali. Não sei de onde surge ela, trajando capa de chuva transparente, e simplesmente me arrasta para fora do bar.


A chuva escasseou, mas os trovões ribombam sem parar. Já na calçada, enquanto procura na bolsa a chave de seu carro, ela anuncia:
- Vem comigo. Essa espelunca não é pra você.
Entro no carro todo suado, molhado. Ficamos em silêncio um bom trecho, enquanto ela, tranquila e segura, dirige com prazer invejável. Sem me olhar, pergunta:
- Quer ouvir alguma coisa?
- Sua voz.
Ela sorri, apanha um disco no console e coloca-o pra rodar. Chet Baker, volume baixo. Respiro aliviado. Pergunto:
- Pra onde a gente tá indo?
- Quero fazer com você um negócio que não faço há muito tempo.
Gelado na barriga. A mulher que cantara só para mim e me salvara de uma enrascada ainda queria...
- Não é o que você está pensando.
- Não tou pensando nada.
- Vamos rodar até acabar o combustível. Quero te mostrar como essa cidade fica linda debaixo de chuva.
Rodamos rodamos rodamos.
Ela tem razão. Nunca me dei ao trabalho de observar a cidade em noite chuvosa. O asfalto brilha, as enxurradas sussurram, as ruas se livram de tanta gente, as luzes ficam difusas, calmas, as esquinas vazias. 
Quando enfim acaba o combustível, ela estaciona em frente a um conjunto bem iluminado de condomínios recém construídos.
- Estamos perto de casa. Quer fazer a gentileza de me levar até lá?
- Eu faria qualquer coisa...
- Não... Não qualquer coisa. Apenas me leve pra casa. Pode ser?
Levo-a, sob uma chuva fina, até seu endereço. Ao se voltar para mim, em frente ao portão, rola o silêncio.
- Ótima a sua companhia. Obrigada.
E me dá as costas.
- Espera. Você não vai...?
- Não. Não vou te convidar pra entrar.
- E amanhã? A gente pode se...?
- Viajo amanhã bem cedo. Volto só daqui há três meses.
- Tento ainda me conter, mas não consigo. Desabo a chorar diante dela, um menino abandonado. Ela me acaricia os cabelos:
- Pra que isso? Você nem me...
- Não importa. Vou te esperar.

Três meses depois ela volta a cantar no bar. Embora ainda iluminada, parece outra pessoa. Não canta as canções que eu espero, não me olha nem de soslaio e finge não me reconhecer. 

Hoje, quando a chuva cai, saio a vagar sozinho pela cidade, pensando nela.