Encantamento instantâneo. Ela canta
sentada, pernas ligeiramente entreabertas, o olhar de soslaio, meio lastimoso,
a interpretação simples, plena de sentimento. Nunca ouvi a canção, e o quadro
todo, suavemente iluminado por um azul de sonho, não me deixa desviar os olhos
dela.
Chove a cântaros. Estou sozinho bebendo conhaque em minha habitual
jornada solitária de quarta-feira após o expediente, e jamais imaginei que
daquele palco infame surgiria tão bela e comovente figura. O dono do bar, um
gordo triste e fedorento, cujo nome nunca me interessei em saber, já anunciara
que teríamos uma grata surpresa na noite. Contudo, como quase sempre as eventuais
atrações deste antro reduzem-se a lamentáveis enganos artísticos, limito-me a
não lhe dar o devido crédito.
Sou um dos únicos fregueses, afora alguns empresários ocupados com seus negócios, reunidos em torno de um notebook, e um casal que não consegue parar de se beijar.
Assim, não tendo para quem cantar, a criatura angelical banhada em azul passa a lançar olhares a princípio casuais em minha direção, que logo tornam-se constantes e acintosos. Fico tão desconcertado que mal consigo pedir outra dose. Acendo um cigarro e passo a encará-la de volta. Ela sorri e, entre uma canção e outra, anuncia: “A próxima é dedicada ao meu único ouvinte”. E canta “Movimento dos Barcos”. Nunca morri de amores por esse samba triste, mas o modo como ela o canta me embala a alma...
A seguir, ela faz um intervalo, quando então segreda ao microfone: “Não saiam daí. Eu vou ali e já volto.” Acho graça na maneira provocativa dela de anunciar seu entreato. Fico torcendo pra ela descer do palco e vir direto falar comigo. Mas a beldade simplesmente some nos bastidores. O bar então é subitamente invadido por uma dessas repulsivas seleções musicais...
Grito pro garçom:
- Pede pra abaixar esse lixo.
Ele, claro, não me ouve:
- Que?
- Abaixa um pouco esta merda.
- Ordens do patrão.
- O patrão sou eu. Sou freguês dessa joça e um dos únicos com coragem de ficar aqui por mais de uma hora.
- Fala você com o gordo. Ele não tá bom hoje não.
- É claro que ele não tá bom. Ele é um bosta.
- Diz você isso pra ele.
- Você também é um bosta.
- E você também é um bosta.
- Claro, aqui tudo é bosta. Essa música, eu, você, o gordo. Tudo uma bosta só.
- Que que há? Ainda não bebeu bastante?
Levanto e grito:
- Abaixem esta merda.
O gordo grita de volta, do outro lado do balcão:
- Ó a boca. Sem gritaria aqui dentro. Sem palavrão.
Subo na cadeira:
- Sem gritaria, sem palavrão, mas toca esta merda num volume de merda que é-
- Que é pra ninguém ficar falando merda, atalha o garçom, querendo me tirar de cima da cadeira.
Sou um dos únicos fregueses, afora alguns empresários ocupados com seus negócios, reunidos em torno de um notebook, e um casal que não consegue parar de se beijar.
Assim, não tendo para quem cantar, a criatura angelical banhada em azul passa a lançar olhares a princípio casuais em minha direção, que logo tornam-se constantes e acintosos. Fico tão desconcertado que mal consigo pedir outra dose. Acendo um cigarro e passo a encará-la de volta. Ela sorri e, entre uma canção e outra, anuncia: “A próxima é dedicada ao meu único ouvinte”. E canta “Movimento dos Barcos”. Nunca morri de amores por esse samba triste, mas o modo como ela o canta me embala a alma...
A seguir, ela faz um intervalo, quando então segreda ao microfone: “Não saiam daí. Eu vou ali e já volto.” Acho graça na maneira provocativa dela de anunciar seu entreato. Fico torcendo pra ela descer do palco e vir direto falar comigo. Mas a beldade simplesmente some nos bastidores. O bar então é subitamente invadido por uma dessas repulsivas seleções musicais...
Grito pro garçom:
- Pede pra abaixar esse lixo.
Ele, claro, não me ouve:
- Que?
- Abaixa um pouco esta merda.
- Ordens do patrão.
- O patrão sou eu. Sou freguês dessa joça e um dos únicos com coragem de ficar aqui por mais de uma hora.
- Fala você com o gordo. Ele não tá bom hoje não.
- É claro que ele não tá bom. Ele é um bosta.
- Diz você isso pra ele.
- Você também é um bosta.
- E você também é um bosta.
- Claro, aqui tudo é bosta. Essa música, eu, você, o gordo. Tudo uma bosta só.
- Que que há? Ainda não bebeu bastante?
Levanto e grito:
- Abaixem esta merda.
O gordo grita de volta, do outro lado do balcão:
- Ó a boca. Sem gritaria aqui dentro. Sem palavrão.
Subo na cadeira:
- Sem gritaria, sem palavrão, mas toca esta merda num volume de merda que é-
- Que é pra ninguém ficar falando merda, atalha o garçom, querendo me tirar de cima da cadeira.
Acerto um direto de direita no
queixo do desgraçado, ele cai em cima da mesa vizinha, estabaca-se no chão e
não levanta. O gordo corre pra cima de mim, um búfalo. Não é preciso mais do
que sair do lugar e deixar ele passar. O infeliz dá com os cornos no pilar ao
lado de minha mesa. Dá gosto de ver. A cabeça é tão oca que o ruído da porrada
ecoa mais alto do que a música.
Nessas alturas, os poucos fregueses já correram todos dali. Não sei de onde surge ela, trajando capa de chuva transparente, e simplesmente me arrasta para fora do bar.
A chuva escasseou, mas os trovões ribombam sem parar. Já na calçada, enquanto procura na bolsa a chave de seu carro, ela anuncia:
- Vem comigo. Essa espelunca não é pra você.
Entro no carro todo suado, molhado. Ficamos em silêncio um bom trecho, enquanto ela, tranquila e segura, dirige com prazer invejável. Sem me olhar, pergunta:
- Quer ouvir alguma coisa?
- Sua voz.
Ela sorri, apanha um disco no console e coloca-o pra rodar. Chet Baker, volume baixo. Respiro aliviado. Pergunto:
- Pra onde a gente tá indo?
- Quero fazer com você um negócio que não faço há muito tempo.
Gelado na barriga. A mulher que cantara só para mim e me salvara de uma enrascada ainda queria...
- Não é o que você está pensando.
- Não tou pensando nada.
- Vamos rodar até acabar o combustível. Quero te mostrar como essa cidade fica linda debaixo de chuva.
Rodamos rodamos rodamos.
Ela tem razão. Nunca me dei ao trabalho de observar a cidade em noite chuvosa. O asfalto brilha, as enxurradas sussurram, as ruas se livram de tanta gente, as luzes ficam difusas, calmas, as esquinas vazias.
Nessas alturas, os poucos fregueses já correram todos dali. Não sei de onde surge ela, trajando capa de chuva transparente, e simplesmente me arrasta para fora do bar.
A chuva escasseou, mas os trovões ribombam sem parar. Já na calçada, enquanto procura na bolsa a chave de seu carro, ela anuncia:
- Vem comigo. Essa espelunca não é pra você.
Entro no carro todo suado, molhado. Ficamos em silêncio um bom trecho, enquanto ela, tranquila e segura, dirige com prazer invejável. Sem me olhar, pergunta:
- Quer ouvir alguma coisa?
- Sua voz.
Ela sorri, apanha um disco no console e coloca-o pra rodar. Chet Baker, volume baixo. Respiro aliviado. Pergunto:
- Pra onde a gente tá indo?
- Quero fazer com você um negócio que não faço há muito tempo.
Gelado na barriga. A mulher que cantara só para mim e me salvara de uma enrascada ainda queria...
- Não é o que você está pensando.
- Não tou pensando nada.
- Vamos rodar até acabar o combustível. Quero te mostrar como essa cidade fica linda debaixo de chuva.
Rodamos rodamos rodamos.
Ela tem razão. Nunca me dei ao trabalho de observar a cidade em noite chuvosa. O asfalto brilha, as enxurradas sussurram, as ruas se livram de tanta gente, as luzes ficam difusas, calmas, as esquinas vazias.
Quando enfim acaba o combustível, ela estaciona em frente a um
conjunto bem iluminado de condomínios recém construídos.
- Estamos perto de casa. Quer fazer a gentileza de me levar até lá?
- Eu faria qualquer coisa...
- Não... Não qualquer coisa. Apenas me leve pra casa. Pode ser?
Levo-a, sob uma chuva fina, até seu endereço. Ao se voltar para mim, em frente ao portão, rola o silêncio.
- Ótima a sua companhia. Obrigada.
E me dá as costas.
- Espera. Você não vai...?
- Não. Não vou te convidar pra entrar.
- E amanhã? A gente pode se...?
- Viajo amanhã bem cedo. Volto só daqui há três meses.
- Tento ainda me conter, mas não consigo. Desabo a chorar diante dela, um menino abandonado. Ela me acaricia os cabelos:
- Pra que isso? Você nem me...
- Não importa. Vou te esperar.
- Estamos perto de casa. Quer fazer a gentileza de me levar até lá?
- Eu faria qualquer coisa...
- Não... Não qualquer coisa. Apenas me leve pra casa. Pode ser?
Levo-a, sob uma chuva fina, até seu endereço. Ao se voltar para mim, em frente ao portão, rola o silêncio.
- Ótima a sua companhia. Obrigada.
E me dá as costas.
- Espera. Você não vai...?
- Não. Não vou te convidar pra entrar.
- E amanhã? A gente pode se...?
- Viajo amanhã bem cedo. Volto só daqui há três meses.
- Tento ainda me conter, mas não consigo. Desabo a chorar diante dela, um menino abandonado. Ela me acaricia os cabelos:
- Pra que isso? Você nem me...
- Não importa. Vou te esperar.
Três meses depois ela volta a cantar no bar. Embora ainda
iluminada, parece outra pessoa. Não canta as canções que eu espero, não me olha
nem de soslaio e finge não me reconhecer.
Hoje, quando a chuva cai, saio a vagar sozinho pela cidade,
pensando nela.