Dedicado a memória de Isaac Garib Netto
Narro este episódio menos para registrá-lo do que para livrar-me do horror que suscita. Não faria questão de assim proceder não fosse a horrenda sensação que de mim se apodera toda vez em que tento recordá-lo.
Antes, porém, julgo necessário alertar aos que se atrevem a ler estas linhas que sou um homem insensível. Não obstante, meu ofício talvez permita uma ou outra crise de consciência, uma ou outra febre de culpa, doenças das quais muitos estão, senão inteiramente livres, ao menos mais seguramente distantes do que por hora me encontro.
Trato, assim, de iniciar meu relato:
“O estranho caso ocorreu no ano de 1975, no remoto interior do estado de São Paulo. As lavouras de café da região haviam sido devastadas por uma das geadas mais rigorosas das últimas décadas. Lembro-me bem de papai ao entrar em casa naquela noite fria. Atônito, levava nas mãos um galho de café esturricado. Com os olhos marejados, balbuciou no meio da sala:
- O trabalho de um ano inteiro... destruído em uma madrugada.
A estúpida lei da natureza: algo contingente arruinar uma empresa tão cuidadosamente planejada e dia a dia cultivada. Esse tipo de desdita devia ser convertida numa espécie de tabu natural, algo de que a própria Terra aprendesse a se envergonhar e a se defender, com largas vantagens e com unhas e dentes. Mas, ao revés, o que vemos são espetáculos randômicos onde imperam os acidentes mais injustificados. Não deixa de ser fortuna, para nós, ignorarmos em que medida os acasos operam em nossas vidas. Caso contrário, ou bem enlouqueceríamos ou duvidaríamos para sempre de coisas como destino e livre-arbítrio. De nada adianta negar a fatalidade do imprevisível. A lei da incerteza parece ser a única.
Basta de dança. Adiante.
Em meio a atmosfera lúgubre de minha casa, e intimidado por um inverno sem precedentes, era então inevitável que minhas impressões de menino, já naturalmente suscetíveis, fossem tão sombriamente marcadas pelas circunstâncias. Ademais vovó estava já deitada em seu leito de morte, na cama grande do quarto grande de minha irmã mais velha. Por conta disso, nosso antes belo jardim murchava a olhos vistos, pois vovó era a única a se importar com ele.
E foi então que testemunhei algo aterrador.
Prognosticariam os céticos que eu estivera em estado não confiável ao achar-me por demais impressionado com o contorno da situação. Mas bem sei o que ouvi, e nem mesmo as suspeitas mais fundamentadas me poriam em dúvida.
O fato é que por volta das 23:50 do dia 17 de julho, quando passava pelo longo corredor que ligava a sala de jantar aos quartos, ouvi, na altura do aposento em que vovó agonizava, o que parecia ser uma espécie de grunhido animal, quase um sussurro, seguido do inconfundível estalar de folhas secas sob um andar cauteloso. Parei imediatamente e pus-me a escutar, orelha grudada na porta. Limito-me a reproduzir o que ouvi:
- Se você quer conselhos ao invés de alertas, eis o conselho: esteja alerta, e preste atenção nesta canção..., ao que se seguiu um canto muito baixo, cuja letra esforcei-me por decifrar.
Imagine então meu torpor ao dar-me conta de que aquela não era a voz de vovó. Tampouco os ruídos poderiam estar sendo causados por ela, devido a frágil saúde que a obrigava a permanecer deitada. Contive-me ao máximo para não me alterar e, com uma frieza que até então desconhecia, arrisquei:
- Quem é você?
Estalar de folhas secas, respiração ofegante.
- O que você quer?
Riso abafado, lenta aproximação. Cresce meu medo.
- Quem está aí?
- ...
- Deixe a vovó em paz.
- ...
- Ela está muito doente, não é bom ficar zanzando pelo quarto.
- ...
- Por que se trancou aí? Essa porta deve ficar sempre aberta para que possamos cuidar dela.
- ...
- Por favor, abra a porta.
Grande agitação, como se a coisa do outro lado se impacientasse de súbito. Sinto grande temor, pois um sopro frio atinge-me a nuca como uma pancada. Paralisado, aterrorizado, ouço o sussurro:
- Você gosta de brincar com fogo.
- Que canção é essa? Não entendi a letra.
- ...
- Pode repeti-la?
- ...
- Por favor.
Ouvi então, ainda como um sopro, e a despeito de todo o meu pavor, o que dizia a cantilena do outro lado da porta:
Não procure, amigo, o grande formigueiro,
Ele está embaixo de você;
Não almeje, meu anjo, a santa perfeição,
Ela está fora de você;
Não queira, coração, a infelicidade,
Ela virá até você.
Já sem conseguir deter a tremedeira que me dominava, insisti:
- O que é você?
- O quarto do desejo.
- Posso desejar o que quiser?
- Sim.
- E meu desejo será?...
- Sim.
...
- Quero morrer no lugar de vovó.
- Assim será.
Morri.
Vovó continua viva. Aos 87 anos ainda arruma disposição para cuidar do jardim, hoje mais florido do que nunca. Papai deixou, a pedido de mamãe, sua grande paixão, as lavouras de café. E desde então nenhum inverno igualou, nem de longe, o de 1975.”
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
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ResponderExcluirOi Amanda. Que pena que vc retirou seu comentário... Fiquei curioso. Bjs.
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ResponderExcluirvocê me excita ;s
ResponderExcluirNossa! Você é lindo! Lindo demais! Gostei dos seus textos. Felicidades!
ResponderExcluirIncrível. Parabéns. Gosto de como você atua e está me encantando a maneira que você escreve. Sabe Adriano, sempre sonhei em ser atriz, porém, a timidez em dizer aos meus pais o que eu realmente queria e a vergonha por não ter o talento que eu esperava me levaram para outro caminho. Hoje sou estudante de direito, estou no 3º ano, sou apaixonada pelo curso, entretanto, ainda sinto um vazio lá no fundo, uma espécie de mini frustração. Enfim... Me da orgulho de ver pessoas como você atuando. @elainspira - Paola - Curitiba
ResponderExcluirChorei com seu texto... 1975, ano em que nasci, meu avô também perdeu todo café com a geada na Zona da Mata de Minas Gerais. Fazia muito frio em Viçosa enquanto eu aprendia a baburciar, o mesmo frio que cruzava a fronteira dos estados e te fez "vivenciar" suas perdas. Vivo em Bauru há pouco mais de 2 meses e já me deparo com essa bela homenagem ao seu pai. Abraço grande pra vc, Adriano!
ResponderExcluirConheci o seu blog há poucos dias e já me apaixonei pelo seu estilo de escrever. História incrível narrada por um homem incrível.
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